Prólogo
A vida dá-nos muita experiência. Quando pensamos que sabemos tudo eis que a vida nos demonstra que somos ainda uns aprendizes e que estamos sempre a aprender, seja na vida profissional, seja em actividades lúdicas. Nesta prova da Geira aprendi várias lições. Vou começar por elas.
1º - Se se vai participar numa prova que requer de nós muita atenção, pois dela pode depender até a nossa própria vida, não podemos levar nada que nos distraia como por exemplo uma máquina fotográfica, a não ser que se tenha grande experiência ou não se distraia com as paisagens maravilhosas que uma prova deste género nos oferece.
2º - Ir sempre acompanhado por alguém, mesmo que não seja muito experiente, nunca correr sozinho. Caso se perca ou caia tem sempre ali alguém que o pode socorrer.
3º - Nunca perder a calma, mesmo que esteja só num local sem nada nem ninguém a não ser uma serra, ter sempre o sentido de orientação que o faça levar à estrada e seja socorrido.
4º e último – Levar um telemóvel com o nº de contacto do director da prova.
A Prova
A expectativa era grande. Iria correr num local onde há cerca de 2000 anos atrás soldados da legião romana tinham feito aquela via romana que ligava Bracara Augusta e a Asturica Augusta. Mas nós não iríamos correr só na Geira. Haveria outros caminhos que teríamos que subir e descer, serra acima serra abaixo, tentando ter sempre em atenção as fitas, vermelhas e brancas, que nos indicariam o caminho e aí, uma distracção, pode ser fatal.
Sete da manhã. Depois de uma noite mal dormida, o Pára tinha uma hemorragia no nariz onde estava difícil estancar o sangue, juntamente com o Daniel (a Susana iria fazer os 15km), a equipe TANDUR, a Otília e o Brito, José Magro e tantos outros amigos, vamos para o local de partida em Lóbios (Espanha). Aqui encontro o “Júlio César”, com óculos e tudo, hoje, até com os “romanos”, é só modernices.
Depois da alocução sobre a prova, e dos
"Ave César", eis a partida, já passava das nove e já se fazia sentir algum calor, para os 52,512km da Geira Romana. Sigo com um grupo compacto, tirando aqui e ali algumas fotos, olho para trás e vejo o Pára parado agarrado ao nariz. Sangrava copiosamente. Volto e fico com ele até aparecer um elemento da organização e ali o Pára ficou. A coluna já ia longe, vou ao alcance dela e junto-me de novo ao grupo. Teríamos cerca de 7km de subida até à fronteira. Ia atrás da Analice quando, em terreno “pantanoso”, ela sobe para uma pedra e pára, contando que ira saltar para a pedra seguinte eu, já em salto, não tive outro remédio senão enfiar o ténis direito no lamaçal, resultado o ténis ficou enterrado e tive que o “pescar” cheio de lama e pedras, a meia também ficou imediatamente suja. Retiro o maior e sigo. Mais em cima, num pequeno riacho (uma constante na prova), lavo o ténis e a meia. Lá tive que recolar de novo. Até à fronteira (Portela do Homem) correu tudo bem e ali estava o Moutinho (o director da prova) a incentivar-nos.
Moutinho com uma boina paraquedista, vestido de centurião, na fronteira.
Um abastecimento só de água e lá vamos de novo. Aqui vou com um grupo onde incluía a Rosa com os seus fones (ler artigo sobre
Almourol). Pouco depois a Rosa tem um autêntico "espalhanço", tropeçou numas raízes e foi ao chão. Lá a levantamos e depois surge o primeiro erro. Não vimos as fitas e íamos seguir saltando um pequeno rio, a nossa sorte é que passa naquele momento a Otília e nos diz que o caminho era pela ponte (travessia do Rio Homem, na Albergaria) onde havia um primeiro controle (levávamos no dedo um chip que era colocado num aparelho que assinalava a nossa passagem).
A ponte do caminho certo.
Seguimos mas a Rosa começa a ficar para trás. Como só estávamos os dois e eu não a queria deixar sozinha, aguardo que um grupo se chegue e deixando-a tento apanhar a Otília que, como eu, ia tirando fotos do percurso. A distância já era muita, mas como não estava com problemas físicos sigo em bom ritmo. Os marcos miliários sucedem-se.
A paisagem envolvente era linda. Perco-me ali a tirar algumas fotos não perdendo a Otília de vista.
A meu lado, a Albufeira de Vilarinho das Furnas. Lindo, espectacular e aqui começou o princípio do meu fim. Mais umas fotos. Naquele momento deixei de ver a Otília. Fiquei perplexo. Onde se teria metido?
Reparem na foto abaixo, vêem uma fita em baixo no lado direito? A máquina viu-a, eu não a vi.
Como não a vi segui em frente. Não via nenhuma fita nas árvores mas como era calçadão pensei que para a organização não valeria a pena, embora o Moutinho nos tivesse alertado que se não houvesse uma fita entre 100 a 200 metros era sinal que não estávamos no caminho certo. Olho para baixo, para a Albufeira, e vejo corredores num trilho. Como é que tinham para lá ido? Não via nenhum caminho e sigo sempre. Passam os bombeiros por mim e como nada me dizem penso que estou no caminho certo. De repente vejo uma estrada e pessoal a correr. Vi que estava enganado. Grito para os bombeiros a perguntar se estava enganado, e eles nessa altura disseram-me que sim, que teria que voltar para trás. Não escrevo aqui o que me ia na alma, percorri mais de 1km perdido e eles viram-me e nada disseram. Volto para trás sempre olhando para o chão e vejo as fitas que não tinha visto. Uma descida maravilhosa até ao rio e foi aí o segundo controlo (junto da Barragem de Vilarinho das Furnas).
Vejo o último classificado acompanhado pelo elemento da organização em BTT. Eu era o último atrás do último. Soube que tinha tido uma quebra de tensão e tinha caído, mas não quis desistir. Acabou a prova já fora de controlo mas acabou.
Volto a passar pelos mesmos bombeiros, que aqui referi, mas já no caminho certo. Mais uns marcos com inscrições romanas.
Como me sentia bem, deixo o meu companheiro e sigo sozinho. Encontro um casal de espanhóis e fomos juntos até ao terceiro controlo (no Museu da Geira).
Casal espanhol numa ponte romana
Aqui já o abastecimento era com sólidos. Estava lá um dos amigos dos Abutres (Bandarra), que tinha torcido um pé (ainda íamos com a Rosa) e tinha desistido. Enquanto o casal fica a descansar eu sigo caminho. Vejo uma cerca com cavalos mas não eram os tais “garranos” (cavalos característicos desta zona) que queria ver. Vejo fitas, muitas fitas (mais tarde disseram-me que eram fitas que tinham ficado da Geira anterior) com marcos indicadores da Geira para cima e para baixo (eram pilares de madeira a indicar também o caminho). Não sabia o que fazer, fui seguindo as fitas que pareceram correctas mas tendo a ideia que parecia uma pescadinha com o rabo na boca. Volto a encontrar outros bombeiros que me disseram que estava no trajecto correcto. Mas eu sabia que tinha perdido tempo ali às voltas (outros mais experientes que eu também se perderam e alguns em situações graves). Sigo em frente na estrada, pouco, e algo estava mal. Não via fitas. Volto para trás e ali encontro o casal de espanhóis. Aí confirmei que tinha andado perdido. Tinham ficado a descansar e ali estavam de novo ao pé de mim. Vimos as fitas e lá fomos pelo campo. Resolvi nessa altura ir com eles. Já não iria encontrar a Otília e assim iria com os espanhóis até ao fim. De novo estrada, fitas do lado direito, e eis nós em plena serra. Lamaçal aqui e ali. Subidas e descidas em pequenas e grandes pedras para evitar ao máximo a lama. Salto para uma grande pedra e tento saltar para terreno sólido, o pé escorrega, tento desesperadamente segurar-me, finco a perna e sinto o músculo da coxa rasgar. Caio desamparado e os espanhóis tentam levantar-me. Não conseguia. Para que eles não perdessem tempo mando-os seguir. Foi o meu maior erro. Fiquei só, mal podendo andar, num lugar sem nada nem ninguém, só eu e a serra.
(continua)